A necessidade de mecanismos de responsabilização do sector privado e não só: "Um canário na mina de carvão"

  • Tipo de artigo Blog
  • Data de publicação 07 de Maio de 2019

Já passou quase uma década desde que o Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas aprovou por unanimidade o quadro sobre as empresas e os direitos humanos. Estes passariam mais tarde a ser conhecidos como os Princípios de Ruggie, devidamente nomeados em homenagem ao Representante Especial das Nações Unidas John Ruggie.

O quadro estabeleceu essencialmente um conjunto de regras internas para o nexo entre os direitos humanos e a conduta empresarial. Os princípios visavam abordar os danos relacionados com os direitos humanos das empresas e fornecer um conjunto mais consolidado e eficaz de directrizes para as actividades empresariais, particularmente aquelas que transcendem as fronteiras nacionais. Quadros como os princípios Ruggie existem para fornecer às partes interessadas internacionais um roteiro para prevenir, ou pelo menos reduzir, os impactos adversos que os projectos e as actividades empresariais possam ter nas comunidades. De facto, o adágio do Banco Mundial de "não causar danos" denota esta mesma noção. A verdade inconveniente é que as instituições financeiras internacionais (IFI) e os bancos multilaterais de desenvolvimento (BMD) continuam a causar danos involuntários como resultado dos impactos de projectos e programas. Será isto uma inevitabilidade infeliz? Talvez. De facto, é difícil dizer se os projectos de infra-estruturas MDB, tais como barragens hidroeléctricas, por exemplo, são um requiem para um "desenvolvimento bom e sustentável". Este debate está em curso e para outra altura.

A realidade é que a globalização e a actual ordem mundial definiram um certo modelo de desenvolvimento que requer o aumento da actividade económica, a liberalização dos mercados e a construção de infra-estruturas, entre outros. Como resultado, as aspirações e oportunidades económicas de milhões de pessoas dependem da implementação bem sucedida e do consequente emprego criado por estes esforços de desenvolvimento. No entanto, ironicamente (ou talvez esperemos, dependendo de quem perguntar), muitos projectos e actividades empresariais deixaram as comunidades mais pobres, mais vulneráveis e despojadas das suas identidades, tradições, culturas e terras.

As centrais eléctricas alimentadas a carvão podem causar enormes impactos ambientais e sociais nas áreas circundantes.

Hoje em dia, a maioria das IFIs dispõe de algum tipo de mecanismo de responsabilização que varia em mandato, título, e função. Todas servem um propósito semelhante de proporcionar acesso e solução aos povos afectados pelo projecto, abrindo portas a uma entidade de outro modo inacessível (e distante). As últimas três décadas provaram ser um divisor de águas para a responsabilização institucional com a criação do Painel de Inspecção do Banco Mundial, o Provedor Consultivo de Conformidade da Corporação Financeira Internacional (CAO) e o Mecanismo Independente de Avaliação do Clima do Fundo Verde, entre muitos outros. A existência de tais mecanismos de responsabilização, contudo, nem sempre resulta em conformidade ou remédio. Veja-se, por exemplo, o caso emblemático de um pequeno grupo de pescadores indianos que assumiu a Corporação Financeira Internacional (IFC) (pode ler mais sobre o caso e o seu significado para a prestação de contas aqui), onde se tornou evidente que os mecanismos de prestação de contas ainda são de algum modo limitados no seu poder e continuam a desempenhar mais ou menos um papel consultivo, sem a capacidade de mandatar para que sejam tomadas medidas.

Nos últimos anos, a arena internacional do desenvolvimento começou a ver um número crescente de novos intervenientes e actores. Bancos de investimento, organismos regionais e mesmo corporações têm-se envolvido gradualmente mais na implementação e concepção de vários processos, projectos e programas de desenvolvimento. As IFI também começaram a depender cada vez mais de intermediários financeiros ou, no caso do Fundo Verde Climático, de entidades acreditadas, para implementar projectos e programas. A estes intermediários tem sido gradualmente atribuída a responsabilidade de estabelecer mecanismos de reparação de queixas a nível institucional e de projectos, para proporcionar às pessoas e comunidades afectadas opções de reparação mais directas, oportunas e justas. Em algumas circunstâncias, por exemplo no que diz respeito ao GCF, o estabelecimento de tais mecanismos de reparação de queixas é necessário a fim de cumprir as condições de acreditação.

As barragens hidroeléctricas podem trazer a energia muito necessária às áreas em desenvolvimento, mas também transportar consigo riscos sociais e ambientais significativos.

O surgimento destes chamados mecanismos de queixa da "segunda vaga" são um sinal bem-vindo de progresso no sentido da responsabilização institucional e da participação dos cidadãos no processo de desenvolvimento. No entanto, estes mecanismos de reclamação, que estão a surgir, requerem capacitação, formação e consultoria especializada, a fim de se revelarem eficazes quando as reclamações começam a surgir. Como é que isto poderia ser facilitado? O ímpeto está na primeira geração de mecanismos de queixas como o MIR, a Unidade de Conformidade Social e Ambiental (SECU) (do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) e CAO entre outros, para assumir um papel de liderança no desenvolvimento destes mecanismos da segunda vaga e estabelecer parcerias, redes e uma comunidade de prática e aprendizagem partilhada. Se se espera que a segunda vaga de mecanismos de reclamação proporcione uma reparação eficaz e significativa às pessoas afectadas pelo projecto, então a primeira vaga deverá desempenhar um papel crítico no desenvolvimento de capacidades e na facilitação da partilha de conhecimentos.

O que se segue para a responsabilidade institucional?

Peritos, responsáveis políticos e académicos concordaram que o investimento público, a ajuda oficial ao desenvolvimento e as iniciativas de desenvolvimento lideradas pelo Estado já não são a única panaceia para um desenvolvimento lento. O sector empresarial e privado já está a desempenhar um papel crítico em projectos de desenvolvimento internacional. Estamos a ver isto reflectido nos fluxos líquidos de investimento directo estrangeiro (IDE). De 1985 a 2017 houve uma explosão de IDE de aproximadamente 3500%, de acordo com dados do Banco Mundial. Isto traduz-se em projectos e programas de grande alcance e ambiciosos que se estão a intensificar nos países em desenvolvimento. Por outras palavras, o espaço e as oportunidades para o investimento privado no mundo em desenvolvimento estão a expandir-se. As IFIs e mesmo o GCF viz the Private Sector Facility (PSF) têm unidades dedicadas com o único objectivo de construir e envolver o sector privado. No entanto, de forma alarmante, muitas empresas e projectos com financiamento privado carecem ou têm, o que só pode ser descrito como, mecanismos de reclamação simbólicos. Dito isto, ainda existe uma ausência significativa de mecanismos de responsabilização no âmbito de empreendimentos privados, apesar de quadros internacionais como os princípios de Ruggie, desencadeando a sua exigência.

Para contextualizar a necessidade muito real, e mesmo urgente, de uma reparação eficaz das queixas a nível corporativo, não é necessário olhar mais longe do que o recente caso envolvendo o gigante mineiro Rio Tinto e um grupo de pastores tradicionais mongóis. The Guardian publicou uma exposição sobre o caso histórico sobre o qual pode ler mais detalhadamente aqui. The Guardian salientou que, na concepção preliminar e aprovação do enorme projecto mineiro, a Rio Tinto tinha negligenciado os riscos sociais significativos envolvidos. O grupo de pastores levou 4 anos para finalmente chegar a um acordo tripartido entre a Rio Tinto, o governo mongol e eles próprios. Todo o processo acabou por custar à Rio Tinto centenas de milhares de dólares em taxas de litígio. Além disso, a cobertura do processo pela imprensa prejudicou a sua reputação internacional, o que sem dúvida teve efeitos de arrastamento no investimento e nos lucros. As comunidades locais sentiram que a Rio Tinto lhes tinha falhado. Agora que se chegou a um acordo, muitos pastores estão à espera de compensações e soluções.

As empresas multinacionais (MNE) subestimam e ignoram frequentemente os impactos e riscos sociais dos projectos. As lições destes infelizes acontecimentos falam à própria raison dartre dos mecanismos de responsabilização. Em vez de reagir e litigar, como fez a IFC e a Rio Tinto, os mecanismos de queixa (quando eficazes) eliminam a necessidade de tais procedimentos. Eles proporcionam às comunidades locais e às pessoas uma oportunidade de desempenhar um papel mais envolvido em projectos financiados internacionalmente e no sector privado, que deveriam beneficiá-los e não prejudicá-los. O estabelecimento de tais mecanismos só pode ser benéfico para empresas e investimentos privados que esperam manter a sua imagem pública e levar um modelo empresarial bem sucedido e sustentável para o futuro.

Artigo preparado por Peter Boldt